
1. Encontramo-nos em pleno processo de consolidação de nossa democracia. Dito processo dar-se-á por concluído quando todos os assuntos puderem ser discutidos livremente, sem que paire sobre os debatedores a pecha de revanchismo ou a ameaça de desestabilização das instituições. Só são fortes as instituições que permitem o debate público e democrático e com ele se fortalecem;
2. A profícua discussão jurídica que ora se afigura não concerne à revisão de leis. Visa, em verdade, a aferição do alcance de dados dispositivos. É secundada por abundante doutrina jurídica e jurisprudências internacionais, de que crimes de tortura não são crimes políticos e sim crimes de lesa-humanidade. A perversa transposição deste debate aos embates políticos conjunturais e imediatos, ao deturpar os termos em que está posto, busca somente mutilá-lo e atende apenas aos interesses daqueles que acreditam que a impunidade é a pedra angular da nação e que aqueles que detêm (ou detiveram) o poder, e dele abusaram, jamais serão responsabilizados por seus crimes;
3. O Brasil é signatário de numerosas convenções internacionais relacionadas à tortura e à tipificação dos crimes contra a humanidade, considerados imprescritíveis pela sua própria natureza e explicitamente assim definidos. Desde 1914, o Brasil reconhece os princípios de direito internacional, mediante a ratificação da Convenção de Haia sobre a Guerra Terrestre, que se funda no respeito a princípios humanitários, no caráter normativo dos princípios do jus gentium, preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública.
O Estado brasileiro reiterou o compromisso com a comunidade internacional em evitar sofrimento à humanidade e garantir o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo, ao assinar a Carta das Nações Unidas, em 21 de julho de 1945. O Estatuto do Tribunal de Nuremberg ratificado pela ONU em 1946 traz a definição de "crimes contra a humanidade", as Convenções de Genebra de 1949, a Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Genocídio e o recente Estatuto de Roma, enfatizam a linha de continuidade que há entre eles, não deixando dúvidas para a presença em nosso ordenamento, via direito internacional, do tipo "crimes contra a humanidade" pelo menos desde 1945.
Além disso, é consenso na doutrina e jurisprudência internacionais que os atos cometidos pelos agentes do governo durante as ditaduras latino-americanas foram crimes contra a humanidade. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, neste sentido, consolidou entendimento que os crimes de lesa humanidade não podem ser anistiados por legislação interna, em especial as leis que surgiram após o fim de ditaduras militares.
4. A jurisprudência internacional reputa crime permanente o desaparecimento forçado, até que sua elucidação se complete bem como considera crime contra a humanidade o crime de tortura. Pleitear a não apuração desses crimes é defender o descumprimento do Direito e expor o Brasil a ter, a qualquer tempo, seus criminosos julgados em Cortes Internacionais, mazela que, desafortunadamente, já acometeu outros países da América Latina. Lembremos que ademais da jurisdição nacional, há a jurisdição penal internacional e a jurisdição penal nacional universal.
5. Nunca houve no Brasil uma legislação de anistia que englobasse os crimes praticados pelos agentes do Estado brasileiro durante a ditadura militar instaurada em 1964. A Lei 6.683/1979 concede anistia apenas aos crimes políticos, aos conexos a esses e aos crimes eleitorais, não mencionando dentre eles a anistia para crimes de tortura e desaparecimento forçado, o que afasta sua aplicabilidade nessas situações. A Constituição de 1988 que em seu art. 8º do ADCT, anistiou todos os perseguidos políticos e assim é feito pela Lei 10.559/02, não refere, em nenhum momento, a anistia às violações de Direitos Humanos.
Nesse sentido, não cabe afirmar que os crimes de tortura e de desaparecimento forçado foram anistiados. Tais crimes são, portanto, crimes de lesa humanidade, praticados à margem de qualquer legalidade, já que os governos da ditadura jamais os autorizaram ou os reconheceram como atos oficiais do Estado.
6. Os cidadãos brasileiros que se insurgiram contra o regime militar, e por contestar a ordem vigente praticaram crimes de evidente natureza política, foram processados em tribunais civis e militares e, em muitos casos, presos e expulsos do país mesmo sem o devido processo legal. Além disso, quando presos, sofreram toda sorte de arbitrariedades e torturas. Depois de julgados, foram anistiados pela lei de 1979 e pela Constituição. Por que os crimes dos agentes públicos, que nem sequer podem ser caracterizados como crimes políticos, devem receber anistia sem o devido processo.
Não se trata de estabelecer condenação prévia, ao contrário, o regime democrático pressupõe a garantia do mais absoluto e pleno direito de defesa, devido processo legal e contraditório válido a qualquer cidadão.
7. O direito à informação, à verdade e à memória é inafastável ao povo brasileiro. É imperativo ético recompor as injustiças do passado. Não se pode esquecer o que não foi conhecido, não se pode superar o que não foi enfrentado. Outros países tornaram possível este processo e fortaleceram suas democracias enfrentando a sua própria história. Ademais, nunca é tarde para reforçar o combate contra a impunidade e a cultura de que os órgãos públicos têm o direito de torturar e matar qualquer suspeito de atos considerados criminosos. Os índices de violência em nosso país devem-se muito ao flagrante desrespeito aos direitos humanos que predomina em vários setores da nossa sociedade, em geral, em desfavor das populações menos favorecidas.
É assim que a comunidade jurídica abaixo assinada manifesta-se em apoio a todos aqueles que estão clamando à Justiça a devida prestação. Manifesta-se em apoio ao Ministério Público Federal, ao Ministério da Justiça e à Secretaria Especial de Direitos Humanos pelo cumprimento de seus deveres constitucionais e por prestarem este relevante serviço à sociedade brasileira e à democracia. E ainda, por fim, presta solidariedade a todos os perseguidos políticos que, a mais de três décadas, fazem coro por uma única causa, a própria razão de ser do Direito: que se faça a Justiça.
Assinam o manifesto, entre outros:
Deisy Ventura, SP, Profa. Dra. Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo;
Dalmo de Abreu Dallari, SP, Prof. Dr. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo;
Fábio Konder Comparato, Prof. Dr. Faculdade de Direito da USP;
Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça;
Cézar Britto, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB);
Jose Ribas Vieira, RJ, Prof. Dr. Titular de Direito Constitucional da UFF e PUC-Rio;
Ovídio A. Baptista da Silva, RS, Prof. Dr. do Curso de Doutorado da Universidade do Vale dos Rio dos Sinos;
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, PR, Professor de Direito da PUC-PR e Procurador Geral do Estado do Paraná;
Claudia Maria Barbosa, PR, Profa. Dra. Pós-Graduação em Direito da PUC-PR;
Cecilia Caballero Lois, SC, Profa. Dra. Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC;
José Ricardo Cunha, RJ, Coordenador Acadêmico do Mestrado Profissional em Poder Judiciário FGV DIREITO RIO e Prof. UERJ;
Pedro B. de Abreu Dallari, SP, Prof. Dr. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo;
Daniel Torres de Cerqueira, PA, Prof. CESUPA, Presidente da Associação Brasileira de Ensino do Direito;
Ricardo Seitenfus, RS, Prof. Dr. da Universidade Federal de Santa Maria, vice-presidente da comissão interamericana de juristas;
Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho, SP, Universidade de São Paulo Faculdade de Direito de Ribeirão Preto;
Katya Kozicki, PR, Profa. Dra. Programa de Pós-Graduação em Direito UFPR e PUC-PR;
Rodolfo de Carvalho Cabral, PE, Prof. Departamento de Teoria Geral do Direito e Direito Privado da UFPE ;
Eneá de Stutz e Almeida, ES, Profa. Dra. Mestrado em Direito da Faculdade de Direito de Vitória/ES;
Edna Raquel Hogemann, RJ, Profa. Doutora em Direito - Rio de Janeiro;
Evandro Menezes de Carvalho, RJ, Coordenador da Faculdade da FGV DIREITO RIO;
José Querino Tavares Neto, SP, UNAERP e Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás;
Angélica Carlini, SP, Prof. Dra. de Direitos Humanos da PUC-CAMPINAS;
Rogério Barcelos Alves, RJ, Coordenador de Ensino da Graduação FGV DIREITO RIO;
Sandro Alex de Souza Simões, PA, Prof. Dr. Adjunto do CESUPA Centro Universitário do Pará;
Lívia Maria Oliveira Maier, DF, Advogada da União;
Oto de Quadros, DF, Promotor de Justiça MPDFT;
Judith Karine Cavalcanti Santos, PE, pesquisadora e professora universitária;
Marco Aurélio Antas Torronteguy, SP, CEPEDISA/USP;
Daiane Moura de Aguiar, RS, Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RS;
Clarissa Franzoi Dri, RS, Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux;
Lucas Pizzolatto Konzen, RS, Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de Oñati;
Rosa Maria Zaia Borges, RS, Profa. Faculdade de Direito da PUCRS;
Márcia Nina Bernardes, RJ, Profa. do Departamento de Direito da PUC-Rio;
Ciani Sueli das Neves, PE, Profa. da UFRPE;
Ana Carla Machado Leite, DF, Tribunal Superior do Trabalho;
José Geraldo de Sousa Junior, da Universidade de Brasília.
Um comentário:
Vale destacar a presença de dois membros do Movimento Faculdade Interativa no manifesto: Evandro Carvalho e Rodolfo Cabral.
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